segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Conheça as histórias de quem vive e convive com HIV

Rafaela de Queiroz é uma moça surpreendente: a cada dia, vira a sorte a seu favor. (E não se deixe enganar pelo corpo franzino, nem pela candura: os pretos olhos são fortes, vivos, inteligentes, irreverentes.)

Ela aprendeu a fazer isso.

Porque Rafuska – como é mais conhecida – nasceu com HIV em agosto de 1991 em Madureira, na região metropolitana do Rio de Janeiro. (Hoje vive em Oswaldo Cruz, também na Zona Norte do Rio.) A irmã mais velha nasceu sem o vírus. O pai morreu de aids em 1993; a mãe, em 1994. No mesmo ano, “a irmã de meu pai – que hoje chamo de ‘mãe’ – e seu marido nos adotaram legalmente”, conta.

Foi uma alegria. A adaptação à nova realidade não foi difícil para a menina de 3 anos: “Eu não me lembro dos meus pais; passei rapidamente a chamar meus tios de ‘mãe’ e ‘pai’, porque o nosso vínculo já era muito forte”. Aos 7, no hospital em que era tratada, Rafaela por fim descobriu que tinha HIV. “Em certo momento, perguntei o que é que eu tinha, e por que tinha sempre de tomar remédios”, explica.

Assim, a despeito da soropositividade – e do tratamento antirretroviral a partir dos 5 anos de idade –, a infância de Rafuska foi feliz e tranquila, cercada pelos cuidados dos pais adotivos. O HIV não era tabu, tampouco motivo para diferenciá-la da irmã ou de outras pessoas com quem convivia. “Apesar de tudo, sempre me vi como uma criança absolutamente normal”, diz. “Na adolescência, optei por não contar que tinha HIV, porque havia muito coitadismo, e eu sempre odiei essa coisa de pena”, acrescenta, afirmando que, “até hoje, quando as pessoas reagem assim, digo: ‘pena coisa nenhuma: nasci com HIV, mas sou uma pessoa como qualquer outra”.

A naturalidade e a força com que aceita sua sorologia foram conquistadas ao longo dos anos, sobre a sólida base da aceitação na infância – mas não sem desafios, evidentemente.

O maior impacto de saber-se soropositiva ocorreu aos 15 anos, em 2007, no primeiro contato de Rafuska com outras pessoas vivendo com HIV – além daquelas que conheceu no hospital –, durante o II Encontro Nacional de Jovens Vivendo com HIV/Aids em Salvador (BA). “As pessoas falavam sobre suas vivências e relatavam a discriminação que sofriam na escola, na família; havia jovens órfãos que diziam que nunca seriam adotados por terem HIV”, conta. Rafuska então descobriu o dissabor de um fato inescapável: ao contrário dela, as pessoas com HIV eram vítimas de intensa discriminação. Descobriu que o vírus era cercado por estigma e preconceito – e, para se proteger, decidiu se calar.

 Paradoxalmente, foi nesse mesmo encontro que Rafuska começou a militância pela qual é hoje conhecida. Iniciou-se no ativismo com a criação da Rede Jovem Rio+/RJR+, em 2009; desde então, foi voluntária no Programa Saúde nas Escolas (PSE), entre 2011 e 2013, e pesquisadora e dinamizadora jovem-jovem no PSE em um projeto Fiocruz/Ministério da Saúde/Ministério da Educação, entre 2014 e 2016, entre muitas outras experiências. (“Na militância, gostava sempre de trabalhar entre pares, por eu ser jovem: os jovens tinham menos receio ou vergonha de fazer perguntas que eles mesmos diziam não ter coragem de fazer a adultos. No ativismo em rede, como sou de transmissão vertical, minha vivência sempre trouxe muita ‘curiosidade’ aos novos jovens que se descobriam vivendo com HIV. Atualmente, não tenho militado muito – por questão de tempo, dinheiro e outros –, mas acabo aceitando convites para participar de eventuais rodas de conversa ou palestras. Meu ativismo é entre pares; existe uma enorme necessidade de sanar dúvidas que muitos não conseguem tirar com seus infectologistas. Não abandono o ativismo por saber que posso fazer a diferença na vida de outras pessoas, porque ainda hoje muitos acreditam que vão morrer muito rápido. Então, hoje administro no Facebook, com outras pessoas, um grupo secreto e a fanpage Florescer, que aborda feminismo, negritude, HIV... e, como toda pessoa que ‘vira referência’, converso, troco vivências pelo WhatsApp e assim por diante.”)  
                
Foi também durante o II Encontro Nacional de Jovens Vivendo com HIV/Aids que começaram os questionamentos da jovem Rafuska sobre a vida com HIV. Veio uma fase de intensa rebeldia. “Nunca neguei minha sorologia, mas fiquei saturada de tomar o remédio todos os dias: eu nunca havia tido escolha”. Ela quis então ter em suas mãos a escolha de parar de tomar os remédios, “para ver no que iria dar”. Passou a testar o tratamento, propositadamente falhando na adesão à terapia. “Eu queria provar, na prática, se dependia daquele remédio para viver”. Como não poderia deixar de ser, os experimentos resultavam em aumento de carga viral e queda na contagem de células CD4 – mas nela não adoeceu. “Mesmo assim, voltei a tomar os antirretrovirais e nunca mais parei”, diz, com serenidade.

(As células CD4 são as mais importantes do sistema imunológico, que protege o organismo contra infecções e doenças. A sua contagem revela quantas células CD4 estão presentes em uma única gota de sangue; quanto maior o número de células CD4 no organismo, melhor. Desde dezembro de 2013, com a adoção do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos, o Brasil indica o tratamento antirretroviral para todas as pessoas com HIV, independentemente dos níveis de CD4 – o que vem resultando no aumento no número de pessoas com HIV em tratamento e com carga viral indetectável. A propósito: carga viral indetectável é a condição de uma pessoa soropositiva que atingiu a supressão do vírus como resultado do uso consistente de medicamentos antirretrovirais. Quem tem carga viral indetectável não está curado do HIV, mas, enquanto mantiver o tratamento antirretroviral, tem o vírus controlado e preso em certas células do organismo – sem se multiplicar, sem danificar o organismo e sem ser transmissível.)

Hoje, a carga viral de Rafuska é indetectável e ela sabe tudo o que há para saber sobre a vida com HIV. Às claras. “Não tenho mais medo: se alguém perguntar, digo, ‘sim, eu tenho HIV’”. Ela deixa um alerta: “Apesar de o HIV ser uma doença crônica controlável e dos avanços dos antirretrovirais, há outras complicações a longo prazo; eu cuido da minha alimentação, do meu emocional”. E, contra o preconceito, lembra o óbvio: a forma de transmissão é irrelevante; o modo como uma pessoa vivendo com HIV adquiriu o vírus é o que menos importa. Para todos, tratamento. Para os demais, as várias alternativas hoje oferecidas pela prevenção combinada.

(No Brasil, o Sistema Único de Saúde coloca à disposição um leque de alternativas para a prevenção ao HIV, na chamada “prevenção combinada” – que inclui o uso dos preservativos masculino e feminino e, no caso da pessoa soropositiva, da adesão ao tratamento antirretroviral rumo à carga viral indetectável. Essas medidas preservam a saúde do portador e não oferecem risco para o parceiro sorodiferente, que não tem HIV.)

Rafuska está bem: “Mas sou diferente a cada dia”, brinca, dizendo que sua espiritualidade a harmoniza e a ajuda a encontrar sentidos em tudo o que vive. (“Eu me considero espírita kardecista, mas tenho inúmeras crenças místicas”, afirma – dizendo acreditar na troca reichiana de energia com a natureza, com a água, com a terra, com o vento. “Minha religião está dentro de mim, no que eu acredito que possa me fazer bem”, afirma.) Rafuska se forma em Psicologia ainda este ano; 2017 será “de novas possibilidades”.

Assim – de mil formas, a cada dia diferente –, Rafuska vira sempre a sorte a seu favor.

Fonte: Departamento das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais

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